Grândola e a democracia formal
Por Santana Castilho
27/02/2013 - Publico
Coelho e Gaspar são seres ocos
de alma. Actuam como robots, insensíveis às pessoas que abalroam. Quando se
espetam na realidade, ficam ali, obcecados, empurrando o que não se move,
moendo carretos, como os bonecos de corda da minha infância. Só mudam quando os
senhores do dinheiro os reprogramam. Trocados os chips moídos, voltam à sugagem
solipsista para que foram preparados. A obra-prima de Relvas foi levá-los ao
Governo. Imagino-o produzindo-a, ora de avental, no secretismo da organização,
ora de iPhone à boca, injectando no tutano da fibra óptica a baba com que foi
tecendo a conveniente teia partidária. Visto, cola-se-lhe à figura a falsidade
e a falta de ética. "Ouvisto", sobram as banalidades. Mas
confrontá-lo com a Grândola, vila morena inquietou os defensores da democracia.
Que democracia? A formal. A do "da" e do "de", agora
destrinçados pela fina porfia presidencial, em tempo certo, oito anos passados.
Ao apreciarem os factos, esqueceram que há outra democracia: a que a alma
imensa de Zeca Afonso cantou.
No Clube dos Pensadores,
primeiro, no ISCTE, depois, Relvas foi interpelado pela canção de Abril. No
primeiro caso reagiu, cantando-a alarvemente. No segundo, foi, por uma vez,
autêntico: fugiu, cobardemente. Quem disse que Relvas foi impedido de falar? Ao
fim de dois minutos e 27 segundos de protesto, bateu em retirada. Na Assembleia
da República, Passos ouviu e falou. Em Vila Nova de Gaia, o próprio Relvas
ouviu e falou. No Porto, Paulo Macedo ouviu e falou. No ISCTE, Relvas ouviu e
fugiu. Estes são os factos. O mesmo discurso que incensou a paciente
resiliência da polícia, que guardava a Assembleia da República a 14 de Novembro
de 2012, regressou agora, perene de hipocrisia. Então, justificou-se hora e
meia de apedrejamento da polícia, por delinquentes comuns, com a tolerância
democrática. Agora, dois minutos e 27 segundos de ruidoso mas pacífico protesto
chegaram para decretar um inaceitável "atentado à liberdade de
expressão".
Então, lavou-se uma carga
policial bruta e desproporcionada. Agora, os moralistas do bloco central
transformaram o algoz em mártir. Quem veio em socorro de Relvas talvez
preferisse um país em coma induzido, que passasse pelas suas diatribes sem
sobressalto cívico. Por isso criticaram os estudantes do ISCTE. Entendamo-nos,
sem paixão.
Naquela plateia estavam filhos
de famílias endividadas e espoliadas por gente que, para ganhar as eleições,
mentiu sem pudor, jurando pública e repetidamente que nunca faria o que, com
frieza de arrepiar, está a fazer. Naquele palco estava uma figura grotesca,
alma gémea e lídima representante do primeiro-mentiroso de um Governo que
semeia desigualdade, fome e desemprego.
Naquela plateia estavam
estudantes que pagam as mais altas propinas da Europa a um Estado que lhes
reserva o desemprego e a emigração como futuro. Naquele palco estava um
licenciado que não precisou de ser estudante.
Naquela plateia estavam
estudantes que, uma vez na vida, tinham a hipótese de exercer publicamente a
sua liberdade de expressão. Naquele palco estava o homem que tem os microfones
que quer, sempre que quer, e que teve o poder de calar o jornalista Pedro Rosa
Mendes, porque disse o que não lhe agradou, e o desplante de ameaçar a
jornalista Maria José Oliveira, porque ia dizer o que não lhe convinha.
Naquela plateia estiveram os
novos pobres, de raiva a crescer nos dentes. Daquele palco fugiu um novo-rico,
de medo a crescer no rabo.
Esta foi a cena que Santos
Silva e Assis, vivendo cá, leram mal. Esta foi a cena que a objectiva da
vice-presidente da Comissão Europeia, Viviane Reding, passando por cá, fixou
assim: "Feliz é o país que protesta com uma canção."
Francisco Assis era bebé em
1969, e Augusto Santos Silva saía da puberdade na mesma altura. Mas são homens
cultos, que conhecem, pela história, o movimento académico iniciado em Coimbra,
em 17 de Abril desse ano. As diferenças abissais entre a ditadura real daquele
tempo e a democracia formal de agora justificarão que sejam generosos para com
o colega de partido, Alberto Martins, que interrompeu o Presidente da
República, durante a inauguração do Edifício da Matemática. Um e outro não
podem ignorar, também, que a dinâmica de toda a academia se sobrepôs, então, às
vanguardas mais activas e organizadas. Pode, pois, ser essa consciência que
justifica a severidade com que julgaram a atitude dos estudantes do ISCTE. É
que ambos sabem que a alternância de primeiros-ministros, em 38 anos de democracia,
resultou do querer de escassos 83 mil militantes do PS, 113 mil do PSD e 30 mil
do CDS, num país com quase nove milhões de eleitores. Reverenciar a reverência
a funções, que podem vir, ou voltar, a desempenhar, fruto desta lógica,
afigurou-se-lhes prudente.
Professor do ensino superior.
Escreve quinzenalmente à quarta-feira s.castilho@netcabo.pt
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