Este tipo de coisas só acontece na Europa à deriva, não por
razões económicas, mas devido à inépcia convulsiva da sua política: estamos a
falar do escândalo de um Tribunal Constitucional alemão determinar hoje a vida
de todos os cidadãos da União, enquanto o Tribunal Constitucional português não
tem qualquer peso. Referimo-nos a Jens Weidmann, o presidente do banco central
alemão, que acusa Mario Draghi de exorbitar as suas funções – salvar o euro,
com os meios à sua disposição – e declara descaradamente guerra a uma moeda a
que chamamos única, precisamente porque não pertence apenas a Berlim.
Na verdade, o mandato do BCE é claro, embora Jens Weidmann
conteste a sua constitucionalidade: manter a estabilidade dos preços (artigo
127º do Tratado de Lisboa), mas respeitando o artigo 3º, que determina o
desenvolvimento sustentável da União, o pleno emprego, o melhoramento da
qualidade do meio ambiente, a luta contra a exclusão social, a justiça e
proteção sociais, a coesão económica, social e territorial e a solidariedade
entre os Estados-membros. Algo não está a funcionar bem no percurso atual da
União Europeia, em que o artigo 3º nem sequer aparece no site de Internet do
BCE, talvez por temor que Berlim fique ressentida.
Partidos devem deixar de enganar eleitores
Dentro de um ano, em maio de 2014, vamos votar a renovação
do Parlamento Europeu. Essa data terá uma especial importância, sobretudo para
os italianos. Porque a Europa da troika (FMI-BCE-Comissão Europeia) nunca teve
tanto peso nas nossas vidas. Porque os seus remédios anticrise são contestados
pelas populações de todo o continente, abalando mesmo o médico mais ansioso por
administrá-los: no dia 22 de setembro, os alemães vão às urnas e, talvez
recompensem a Alternativa para a Alemanha, um partido antieuropeu, acabado de
eclodir em fevereiro. Os partidos terão de deixar de fazer crer que podem
“vergar” Angela Merkel. Especialmente em Itália, vão ter de deixar de enganar
os eleitores e cidadãos. Pela primeira vez, finalmente, se ousarem, poderão
designar o presidente da Comissão Europeia. É o que está nos tratados.
Estamos a falar de mentiras, porque nenhum governo pode
fazer vergar Berlim com os argumentos puramente económicos até aqui utilizados:
um pouco menos austeridade, algum crescimento, ligeiras facilidades. Firmemente
convencida de que só os mercados nos conseguirão disciplinar, a Alemanha só
mudará de rumo se a política se sobrepuser às teorias económicas que
degeneraram em dogma. Isto se os governos, os partidos políticos e os cidadãos
manifestarem uma visão clara sobre como deve ser outra Europa, que não a atual,
dotada de recursos indigentes e com um equilíbrio de poderes que foram buscar
ao século XIX.
União Europeia parece uma igreja corrupta
Presentemente, a União Europeia parece uma igreja corrupta,
a precisar de um cisma protestante: uma Reforma de credo e de léxico. De um
plano pormenorizado (as teses de Martinho Lutero tinham 95 pontos). Só
opondo-lhe uma fé política poderemos descartar o papado económico. É a única
maneira de romper com a religião dominante, e Berlim terá que escolher entre
uma Europa à alemã e uma Alemanha à europeia, entre a hegemonia e a paridade
entre os Estados-membros. É uma escolha com que a Europa se confronta
sistematicamente: Adenauer dizia, em 1958, que a Europa “não deve ser deixada
na mão dos economistas”.
A ortodoxia germânica não é de hoje. Afirmou-se a seguir à
guerra, com o nome de “ordoliberalismo”: como são sempre racionais, os mercados
sabem perfeitamente corrigir os desequilíbrios, sem interferência do Estado. É
a ideologia da “casa em ordem”: cada país expia sozinho os seus pecados (em
alemão, “Schuld” significa tanto “dívida” como “culpa”). Solidariedade e
cooperação internacional vêm depois, como recompensa para os países que fizeram
bem o trabalho de casa. Tal como em Inglaterra, a democracia é invocada de modo
falacioso: delegando pedaços de soberania, esvaziam-se os parlamentos
nacionais. E é assim que o Tribunal Constitucional alemão é chamado a pronunciar-se
sobre qualquer iniciativa europeia.
Democracias não estão em pé de igualdade
Se existe embuste, é porque, dentro do navio Europa, as
democracias não estão todas em pé de igualdade: há sacrossantos e condenados.
Em 5 de abril, o Tribunal Constitucional português invalidou quatro medidas da
cura de austeridade impostas pela troika (cortes nos salários da Função Pública
e nas pensões de reforma), por serem contrárias ao princípio da igualdade. O
comunicado divulgado no dia seguinte pela Comissão Europeia (dia 7 de abril),
ignora completamente o veredicto do Tribunal e “congratula-se” por Lisboa
prosseguir a terapia acordada, recusando qualquer renegociação: “É essencial
que as principais instituições políticas portuguesas permaneçam unidas no
apoio” à recuperação em curso. A diferença de tratamento dos juízes
constitucionais alemães e portugueses é tão desonesta que o ideal europeu vai
ter dificuldade em sobreviver junto dos cidadãos da União Europeia.
Há quem diga que a Europa conseguirá sobreviver se a
hegemonia alemã for mais benevolente, mantendo a hegemonia. Foi o que George
Soros expressou, em setembro de 2012, à New York Review of Books, apresentando
argumentos sólidos. O Governo polaco exige-o. Na Alemanha, a benevolência é
reivindicada por aqueles que temem não a hegemonia, mas uma autoidolatria pouco
ostensiva, introvertida.
Europa numa encruzilhada
Hegemonia e autoidolatria são, porém, os sintomas, não a
causa do mal que assombra cronicamente a Alemanha. Se a Alemanha quis uma
Europa supranacional, ao ponto de o incluir na Constituição, foi porque os
defensores do ordoliberalismo (do Banco Central e da academia) foram várias
vezes postos de lado. Adenauer impôs a CEE e o pacto franco-alemão a um
ministro da Economia – Ludwig Erhard – que fez o que pôde para os enterrar,
tendo acusado a CEE de “endogamia” protecionista e “absurdo económico”. Com
Londres, tentou torpedear o Tratado de Roma, preferindo um acordo de comércio
livre. Nem Adenauer, nem o primeiro presidente da Comissão, Walter Hallstein,
lhe deram ouvidos e a racionalidade política prevaleceu. O cenário repetiu-se
com o euro: atrelado a Paris, Helmut Kohl privilegiou a política, ignorando
economistas e Banco Central. Hoje, a Europa está numa encruzilhada semelhante,
mas com políticos camaleões, desprovidos de verdadeira determinação. A crise
destruiu as ilusões do povo alemão. O ordoliberalismo politizou-se e acerta
contas antigas.
Resta, portanto, a solução do cisma: a construção de uma
nova Europa, emanando da base e não de governos. Já existe um projeto, escrito
pelo economista Alfonso Iozzo: segundo os defensores do federalismo, pode assumir
a forma de uma “iniciativa cidadã europeia” (artigo 11 º do Tratado de Lisboa),
a apresentar à Comissão Europeia. A ideia é dotar a União com recursos
suficientes para impulsionar o crescimento, em vez de forçar os Estados-membros
ao rigor. Um crescimento não só mais barato, porque concertado, mas também
socialmente mais justo e mais ecológico, porque alimentado pelos impostos sobre
as transações financeiras, a tributação sobre a produção de carbono e a criação
de um IVA europeu. As duas primeiras taxas podem angariar €80 a €90 mil
milhões: o orçamento comunitário respeitaria o limiar de 1,27% [do PIB], na
altura acordado. Mobilizando o Banco Europeu de Investimento e as obrigações
europeias, chega-se a um plano de €300 a €500 mil milhões e a 20 milhões de
novos empregos na economia do futuro (investigação, energia).
Para isto, é preciso, no entanto, que a política volte à
ribalta e deixe de ser um conjunto de regras automáticas, mas, como preconiza o
economista Jean-Paul Fitoussi, uma escolha. Temos de recuperar a autossubversão
de Lutero, quando redigiu as suas 95 teses e declarou, segundo alguns: “Nisto,
estou certo. Não posso agir de outro modo. Que Deus me ajude, ámen...”