“O neocolonialismo do senso comum”
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Colonização da vida quotidiana
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Novas tecnologias da consensualização
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Desejar o consumo, desejar o capitalismo
A hegemonia profunda que influencia o senso comum é feita
também de desejo. O totalitarismo do consumismo, simbolizado pela omnipresença
da publicidade, é um amestramento do desejo que impõe não só os objetos de
consumo como objetos privilegiados de desejo, reinventados à velocidade do
capitalismo, mas também uma forma de desejo. Deseja-se o consumo. Daí a
gratificação nunca ser satisfatória, daí a compulsão para a repetição do
comportamento, daí se produzir a falta, daí nos deixarmos embarcar docemente na
ilusão da livre escolha do mercado e lutarmos mesmo pela oportunidade de consumir
mais. Daí o capitalismo triunfar através do desejo dos/as explorados/as.
Gilles
Deleuze é o pensador fecundo dessa colonização do desejo que nos relembra do
caráter inconsciente da adesão ao capitalismo e o caráter infraestrutural do
desejo, que mostra os mecanismos finos das máquinas desejantes e que sugere as
suas capacidades subversivas.
O
mesmo Deleuze pensou, inspirado por Foucault, num texto famoso (Post-scriptum
sobre a sociedade de controlo), a passagem da sociedade disciplinar à sociedade
de controlo, do molde à modulação enquanto “uma moldagem auto deformante que
mudasse continuamente”. Impõe-se a lógica da empresa-motivação que divide
trabalhadores/as e os atravessa, que invade o próprio espírito, que requer já
não apenas uma atitude no trabalho, já não apenas uma adesão a uma ideologia
corporativa mas todo um tipo de personalidade normalizada de forma sorridente.
E nasce uma fórmula de sucesso: “o homem endividado.”
Interlúdio: notas para uma crítica
da crítica da razão negreira
#1 Ganhamos todos e temos tanto a perder…
Mapear a totalidade dos elementos do senso
comum seria uma tarefa inglória, nem tem cabimento aqui um relatório exaustivo.
Mas fique uma simplificação rude que vai ao encontro de algumas das crenças
básicas da hegemonia profunda do capitalismo.
- Todos ganhamos com o jogo
capitalista.
Desde as primeiras fases do marxismo,
mudou a situação das classes subalternas. Não pretendendo minimizar as
carências, que estão numa espiral crescente em tempo de crise e correspondem a um
processo brutal de pauperização e de transferência de riqueza, o proletariado
ocidental de antanho e a sua condição de miséria deixaram de ser a regra.
Depois do crescimento económico do pós-guerra e da relativa distribuição da
riqueza imposta pelas relações de forças internacionais e pelas lutas dos
trabalhadores, a maior parte dos/as oprimidos/as ocidentais já não se pode
dizer que sejam os famélicos da terra.
A
invenção da classe média potenciou as retóricas transclassistas: todos ganhamos
com o crescimento económico do país, o interesse nacional deve ser
salvaguardado. E mesmo quando se assiste ao rasgar do pacto ocidental de
distribuição muito limitada de riqueza é ainda sob a modalidade do sacrifício
temporário que ele se traduz na língua dos poderes hegemónicos.
-
Perdemos tudo se o sistema ruir.
Por
outro lado, a perda de estatuto faz parte da retórica do medo desta hegemonia.
A chantagem das vidas a crédito e a espiral do consumismo conduzem ao sentimento
de que se tem muito mais a perder (o trabalho, a casa, o carro etc.) do que os
grilhões que nos prendem. Este conformismo faz com que, mesmo quando se
reconhece as graves injustiças do sistema, pareça mais importante minimizar as
perdas do que arriscar a mudança.
-
Apesar do jogo estar viciado temos chances de subir na vida.
A ilusão de ascensão social é uma parte
integrante do sistema de hegemonia. Um euromilhões de mobilidade social será
probabilidade suficiente para convencer alguns e a repetição exaustiva dos
exemplos de sucesso aí está para não nos esquecermos.
#2 Não é possível mudar e se fosse possível não era
desejável
- Não somos dominados ou
hegemonizados.
Pode-se ainda acreditar que não estamos
dentro de um jogo viciado e que as escolhas são livres e que são para serem
respeitadas. A ilusão da liberdade de escolha (entre produtos ou candidatos
políticos) é correlativa à ilusão da liberdade de pensamento. O senso comum
acredita na sua espontaneidade e originalidade, tem-se por auto suficiente,
sendo acrítico para com as suas fontes. A arrogância do “eu penso que” colocada
no que está pré-fabricado para ser assim pensado conjuga- se com a força de um
sujeito coletivo de enunciação (diz que é assim…) que é identitário e contagiante.
As
“pessoas normais” têm a ordem natural das coisas por normal e a hegemonia dos
nossos tempos disfarça-se de não-ideologia, torna- se invisível por vários
meios. Por contraste, fazem política e estão imersos numa ideologia todos/ as
os/as que procurem uma perspetiva contra-hegemónica.
-
Mesmo que não ganhemos todos, o poder das classes dominantes é impossível de
quebrar.
As derrotas dos movimentos dos/as
trabalhadores/as pesam na consciência. A elas se junta o pessimismo inveterado
que diz que a ordem do mundo é mesmo assim e que sempre assim foi. Não há lugar
para mudanças. Mal por mal, ficaríamos com o que temos que não é dos piores
sistemas de exploração.
-
A mudança é uma engenharia social perigosa que dá lugar ao totalitarismo.
O fim dos regimes do leste europeu trouxe
consigo uma deceção relativamente à possibilidade de construção de
alternativas. Enraíza-se a ideia de que o capitalismo é o único sistema
funcional, de que não há alternativa ou mesmo de que qualquer tentativa de construção
de uma diferença é uma utopia perigosa. Passamos do “capitalismo ou o caos”
para “o capitalismo ou o totalitarismo”…
#3 Os políticos são
todos iguais
- A política não vale a pena porque
é um negócio sujo.
Ainda que haja reconhecimento das
injustiças e coragem de mudança, o meio de lutar por essa libertação é
apresentado como conspurcado por natureza pelas vontades de poder que o
capturam. E, mesmo que se diga que o meio de luta não é político mas social,
valerá o mesmo:
- Os políticos são todos iguais.
Tal
enunciado tornou-se uma arma de desmobilização massiva que atinge mais quem é
de alguma forma crítico do sistema em que vivemos. Em vez da conclusão deste
enunciado ser a procura de uma outra forma de política e de participação
cívica, acaba tantas vezes por ser a desistência ou mesmo um abrir de braços
aos populistas anti políticos, tecnocratas e especialistas que nos confiscam a
palavra.
Assim,
uma luta emancipatória é apresentada como inexequível porque a solidariedade é
impossível: devido ao egoísmo do ser humano, devido à natureza do poder
presente mesmo nos antipoderes.
#4 Somos culpados pela nossa situação
- A culpa é tua.
A desmobilização da política vem a par com
um reinvestimento e mobilização num egoísmo utilitarista. Vence então a
retórica do empreendedorismo com o seu misticismo de pacote que vende
positividades falsas. Estas são autoculpabilizantes. Dizem-nos que se formos
inventivos, de forma suficientemente forte, se formos positivos, conseguiremos.
Dizem-nos, portanto, que se não conseguimos é por nossa culpa e instigam-nos a
reinvestir ainda mais no individualismo de forma a desejar ainda mais
fortemente.
Quando
a desigualdade social se quisermos se mascara de política da autoestima, a consciência
de classe torna-se mais difícil. Para construir contra-hegemonias é preciso
desarmadilhar a possibilidade da política contra as ontologias da deceção e as
psicologias positivas do capitalismo.
A
nova direita ao assalto do senso comum
Deslocando o olhar dos elementos estruturais e profundos e focando-o no momento político que vivemos deparamo-nos com uma recolonização do senso comum enquanto
empreendimento altamente agressivo. Uma nova direita está disposta a mobilizar
os elementos mais regressivos do senso comum (nacionalismo, racismo, ódio à
diferença, egoísmo…) num jogo perigoso: o lado mais sombrio do negreiro do
espírito é explorado pelos traficantes dos afetos mais fáceis.
E
o jogo generaliza-se à medida que a crise da política e a política da crise
arrastaram o espetro político para a direita. Mesmo as respeitáveis direitas
tradicionais acabaram muitas vezes por sucumbir à tentação confundindo-se com a
extrema-direita na corrida ao populismo.
Ao
populismo rude procura-se conjugar a peritagem económica mais refinada dos
editorialistas do sistema que ocuparam o espaço mediático de forma desigual
para explicar a inevitabilidade da austeridade e a impossibilidade de políticas
alternativas. Um cocktail tão mais explosivo já que a política de hegemonia do
senso comum reacionário parece ser mais dura, resistente à argumentação e aos
factos, do que a própria hegemonia construída denodadamente pelos sound-bytes televisivos.
Portanto,
àquelas crenças base da hegemonia capitalista juntam-se outras que são parte
fundamental da atual relação de forças: o ressentimento face aos mais fracos
que substitui a inveja face aos mais ricos (o discurso sobre o RSI); o
saudosismo serôdio dos tempos idos que sendo transversal em Portugal ganha
contornos preocupantemente salazarentos (o discurso da escola de antanho); o
enaltecer das virtudes da pobreza que também faz lembrar esse tempos (o
discurso presidencial, mas também algumas apropriações do neoruralismo pelos
média); a política do medo (o discurso da insegurança permanente e do
policiamento permanente); a exploração do sentimento identitário ameaçado (os
discursos nacionalistas e anti-imigração); a dialética entre o apelo consumista
de que necessita a burguesia produtora de bens de consumo interno e a justificação
de que “vivemos acima das nossas possibilidades” que corta direitos e salários
beneficiando a burguesia exportadora.
O
exercício do populismo direitista, que certamente será também ele um mercado
competitivo, não deixa de dar a impressão de ser uma forma de retórica fácil.
Ao mesmo tempo parte dos militantes de esquerda sente-se confortável a
contrapor-lhe factos e desmonta facilmente as falácias em que se apoiam este
tipo de raciocínios (conhecemos os preconceitos, as generalizações abusivas, os
apelo à emoção, os argumentos de autoridade, etc.). Só que o problema é que
fica igualmente a impressão da dificuldade de ultrapassar os seus efeitos.
Chocamos com um muro…”
(…)
Excerto do
artigo “O neocolonialismo do senso comum”, de Carlos Carujo,
publicado na revista “Vírus”, II série, nº1 de Junho de 2012