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terça-feira, 30 de abril de 2013

“O neocolonialismo do senso comum”


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Colonização da vida quotidiana
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 Novas tecnologias da consensualização
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 Desejar o consumo, desejar o capitalismo
 A hegemonia profunda que influencia o senso comum é feita também de desejo. O totalitarismo do consumismo, simbolizado pela omnipresença da publicidade, é um amestramento do desejo que impõe não só os objetos de consumo como objetos privilegiados de desejo, reinventados à velocidade do capitalismo, mas também uma forma de desejo. Deseja-se o consumo. Daí a gratificação nunca ser satisfatória, daí a compulsão para a repetição do comportamento, daí se produzir a falta, daí nos deixarmos embarcar docemente na ilusão da livre escolha do mercado e lutarmos mesmo pela oportunidade de consumir mais. Daí o capitalismo triunfar através do desejo dos/as explorados/as.
Gilles Deleuze é o pensador fecundo dessa colonização do desejo que nos relembra do caráter inconsciente da adesão ao capitalismo e o caráter infraestrutural do desejo, que mostra os mecanismos finos das máquinas desejantes e que sugere as suas capacidades subversivas.
O mesmo Deleuze pensou, inspirado por Foucault, num texto famoso (Post-scriptum sobre a sociedade de controlo), a passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controlo, do molde à modulação enquanto “uma moldagem auto deformante que mudasse continuamente”. Impõe-se a lógica da empresa-motivação que divide trabalhadores/as e os atravessa, que invade o próprio espírito, que requer já não apenas uma atitude no trabalho, já não apenas uma adesão a uma ideologia corporativa mas todo um tipo de personalidade normalizada de forma sorridente. E nasce uma fórmula de sucesso: “o homem endividado.”

 Interlúdio: notas para uma crítica da crítica da razão negreira

 #1 Ganhamos todos e temos tanto a perder…
 Mapear a totalidade dos elementos do senso comum seria uma tarefa inglória, nem tem cabimento aqui um relatório exaustivo. Mas fique uma simplificação rude que vai ao encontro de algumas das crenças básicas da hegemonia profunda do capitalismo.
 - Todos ganhamos com o jogo capitalista.
 Desde as primeiras fases do marxismo, mudou a situação das classes subalternas. Não pretendendo minimizar as carências, que estão numa espiral crescente em tempo de crise e correspondem a um processo brutal de pauperização e de transferência de riqueza, o proletariado ocidental de antanho e a sua condição de miséria deixaram de ser a regra. Depois do crescimento económico do pós-guerra e da relativa distribuição da riqueza imposta pelas relações de forças internacionais e pelas lutas dos trabalhadores, a maior parte dos/as oprimidos/as ocidentais já não se pode dizer que sejam os famélicos da terra.
A invenção da classe média potenciou as retóricas transclassistas: todos ganhamos com o crescimento económico do país, o interesse nacional deve ser salvaguardado. E mesmo quando se assiste ao rasgar do pacto ocidental de distribuição muito limitada de riqueza é ainda sob a modalidade do sacrifício temporário que ele se traduz na língua dos poderes hegemónicos.
 - Perdemos tudo se o sistema ruir.
Por outro lado, a perda de estatuto faz parte da retórica do medo desta hegemonia. A chantagem das vidas a crédito e a espiral do consumismo conduzem ao sentimento de que se tem muito mais a perder (o trabalho, a casa, o carro etc.) do que os grilhões que nos prendem. Este conformismo faz com que, mesmo quando se reconhece as graves injustiças do sistema, pareça mais importante minimizar as perdas do que arriscar a mudança.
 - Apesar do jogo estar viciado temos chances de subir na vida.
 A ilusão de ascensão social é uma parte integrante do sistema de hegemonia. Um euromilhões de mobilidade social será probabilidade suficiente para convencer alguns e a repetição exaustiva dos exemplos de sucesso aí está para não nos esquecermos.
 #2 Não é possível mudar e se fosse possível não era desejável
 - Não somos dominados ou hegemonizados.
 Pode-se ainda acreditar que não estamos dentro de um jogo viciado e que as escolhas são livres e que são para serem respeitadas. A ilusão da liberdade de escolha (entre produtos ou candidatos políticos) é correlativa à ilusão da liberdade de pensamento. O senso comum acredita na sua espontaneidade e originalidade, tem-se por auto suficiente, sendo acrítico para com as suas fontes. A arrogância do “eu penso que” colocada no que está pré-fabricado para ser assim pensado conjuga- se com a força de um sujeito coletivo de enunciação (diz que é assim…) que é identitário e contagiante.
As “pessoas normais” têm a ordem natural das coisas por normal e a hegemonia dos nossos tempos disfarça-se de não-ideologia, torna- se invisível por vários meios. Por contraste, fazem política e estão imersos numa ideologia todos/ as os/as que procurem uma perspetiva contra-hegemónica.
 - Mesmo que não ganhemos todos, o poder das classes dominantes é impossível de quebrar.
 As derrotas dos movimentos dos/as trabalhadores/as pesam na consciência. A elas se junta o pessimismo inveterado que diz que a ordem do mundo é mesmo assim e que sempre assim foi. Não há lugar para mudanças. Mal por mal, ficaríamos com o que temos que não é dos piores sistemas de exploração.
 - A mudança é uma engenharia social perigosa que dá lugar ao totalitarismo.
 O fim dos regimes do leste europeu trouxe consigo uma deceção relativamente à possibilidade de construção de alternativas. Enraíza-se a ideia de que o capitalismo é o único sistema funcional, de que não há alternativa ou mesmo de que qualquer tentativa de construção de uma diferença é uma utopia perigosa. Passamos do “capitalismo ou o caos” para “o capitalismo ou o totalitarismo”…
 #3 Os políticos são todos iguais
 - A política não vale a pena porque é um negócio sujo.
 Ainda que haja reconhecimento das injustiças e coragem de mudança, o meio de lutar por essa libertação é apresentado como conspurcado por natureza pelas vontades de poder que o capturam. E, mesmo que se diga que o meio de luta não é político mas social, valerá o mesmo:
 - Os políticos são todos iguais.
 Tal enunciado tornou-se uma arma de desmobilização massiva que atinge mais quem é de alguma forma crítico do sistema em que vivemos. Em vez da conclusão deste enunciado ser a procura de uma outra forma de política e de participação cívica, acaba tantas vezes por ser a desistência ou mesmo um abrir de braços aos populistas anti políticos, tecnocratas e especialistas que nos confiscam a palavra.
Assim, uma luta emancipatória é apresentada como inexequível porque a solidariedade é impossível: devido ao egoísmo do ser humano, devido à natureza do poder presente mesmo nos antipoderes.
 #4 Somos culpados pela nossa situação
 - A culpa é tua.
 A desmobilização da política vem a par com um reinvestimento e mobilização num egoísmo utilitarista. Vence então a retórica do empreendedorismo com o seu misticismo de pacote que vende positividades falsas. Estas são autoculpabilizantes. Dizem-nos que se formos inventivos, de forma suficientemente forte, se formos positivos, conseguiremos. Dizem-nos, portanto, que se não conseguimos é por nossa culpa e instigam-nos a reinvestir ainda mais no individualismo de forma a desejar ainda mais fortemente.
Quando a desigualdade social se quisermos se mascara de política da autoestima, a consciência de classe torna-se mais difícil. Para construir contra-hegemonias é preciso desarmadilhar a possibilidade da política contra as ontologias da deceção e as psicologias positivas do capitalismo.
 A nova direita ao assalto do senso comum
 Deslocando o olhar dos elementos estruturais e profundos e focando-o no momento político que vivemos deparamo-nos com uma recolonização do senso comum enquanto empreendimento altamente agressivo. Uma nova direita está disposta a mobilizar os elementos mais regressivos do senso comum (nacionalismo, racismo, ódio à diferença, egoísmo…) num jogo perigoso: o lado mais sombrio do negreiro do espírito é explorado pelos traficantes dos afetos mais fáceis.
E o jogo generaliza-se à medida que a crise da política e a política da crise arrastaram o espetro político para a direita. Mesmo as respeitáveis direitas tradicionais acabaram muitas vezes por sucumbir à tentação confundindo-se com a extrema-direita na corrida ao populismo.
Ao populismo rude procura-se conjugar a peritagem económica mais refinada dos editorialistas do sistema que ocuparam o espaço mediático de forma desigual para explicar a inevitabilidade da austeridade e a impossibilidade de políticas alternativas. Um cocktail tão mais explosivo já que a política de hegemonia do senso comum reacionário parece ser mais dura, resistente à argumentação e aos factos, do que a própria hegemonia construída denodadamente pelos sound-bytes televisivos.
Portanto, àquelas crenças base da hegemonia capitalista juntam-se outras que são parte fundamental da atual relação de forças: o ressentimento face aos mais fracos que substitui a inveja face aos mais ricos (o discurso sobre o RSI); o saudosismo serôdio dos tempos idos que sendo transversal em Portugal ganha contornos preocupantemente salazarentos (o discurso da escola de antanho); o enaltecer das virtudes da pobreza que também faz lembrar esse tempos (o discurso presidencial, mas também algumas apropriações do neoruralismo pelos média); a política do medo (o discurso da insegurança permanente e do policiamento permanente); a exploração do sentimento identitário ameaçado (os discursos nacionalistas e anti-imigração); a dialética entre o apelo consumista de que necessita a burguesia produtora de bens de consumo interno e a justificação de que “vivemos acima das nossas possibilidades” que corta direitos e salários beneficiando a burguesia exportadora.
O exercício do populismo direitista, que certamente será também ele um mercado competitivo, não deixa de dar a impressão de ser uma forma de retórica fácil. Ao mesmo tempo parte dos militantes de esquerda sente-se confortável a contrapor-lhe factos e desmonta facilmente as falácias em que se apoiam este tipo de raciocínios (conhecemos os preconceitos, as generalizações abusivas, os apelo à emoção, os argumentos de autoridade, etc.). Só que o problema é que fica igualmente a impressão da dificuldade de ultrapassar os seus efeitos. Chocamos com um muro…”
(…)
Excerto do artigo “O neocolonialismo do senso comum”, de Carlos Carujo, publicado na revista “Vírus”, II série, nº1 de Junho de 2012


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