16.
As desigualdades profundas
As grandes desigualdades são
recentes. Terão certamente menos de dez mil anos. Só passaram a existir quando
deixamos de ser caçadores coletores.
O que surpreende é que apesar
de estarmos cada vez mais evoluídos, refiro-me ao desenvolvimento tecnológico,
mas também ao conhecimento científico nas mais diversas áreas, as desigualdades
entre ricos e pobres não param de aumentar. Diria que se agravaram nos últimos
40 anos ao ponto de atingiram valores verdadeiramente escandalosos.
A única razão para estas desigualdades
que não servem os interesses da esmagadora maioria da população mundial (e
muito provavelmente o tempo dirá que afinal não serviu os interesses de
ninguém), tem que ver com as regras do jogo.
É exatamente como no jogo de
tabuleiro “Monopólio”. Termina quando um fica com tudo e os restantes com nada.
Na vida real, na economia em
que vivemos, basta alterar as regras do jogo para que não seja possível
amealhar tanto dinheiro e tão depressa. No limite, até se podia permitir que
multimilionários continuassem a expandir os seus negócios desde que a partir de
determinado montante, os lucros fossem para a população onde os mesmos eram
gerados. Como acontece na pesca desportiva que no fim atiram de novo o peixe, ainda
vivo, para o local de onde foi retirado.
Não acredito minimamente que
este modelo sirva o interesse do ser humano. Julgo mesmo que pode determinar o
fim da nossa espécie.
Não conheço pessoalmente
nenhum homem rico, mas acredito que tenham grandes qualidades, principalmente
em criar riqueza e a gerir negócios.
Mas houve homens e mulheres
que fizeram muito pela humanidade, que ajudaram a tornar vida de todos muito
melhor e não ficaram “escandalosamente” ricos.
O que pretendo dizer é que só
há uma justificação para que certas pessoas tenham tanto dinheiro, especialmente
quando ainda há tantas pessoas com tão pouco: porque as regras do jogo estão
feitas para que seja assim.
A grande questão prende-se em
saber se gostamos de viver neste modelo económico, ou se simplesmente não o
tentámos alterar, porque não tivemos capacidade para tal.
Pode dar-se o caso de ainda não
termos conseguido porque os mais ricos conseguiram impor a sua vontade, mas
também pode ser que queiramos que as coisas assim continuem…
Poderá ser essa uma das razões?
No fundo todos gostaríamos de
ser ricos!
Na verdade, não é um sonho
impossível, no sistema capitalista liberal em que vivemos: uma pessoa
enriquecer em relativamente pouco tempo (principalmente se não fizer parte do
clube dos pobres).
O problema é que este sistema,
à semelhança do que acontece em jogos do estilo EUROMILHÕES, só dá para muito poucos. A esmagadora maioria ficará
sempre a ver navios.
No entanto, se optássemos por
um outro modelo, poderíamos erradicar a miséria e a pobreza (mesmo que isso nos
exigisse, a certa altura, algum tipo de controlo populacional).
Portanto essa é a questão que
se coloca: Um sistema com ricos com quase tudo, alguma classe média e muitos
pobres? Ou um sistema sem pobres, enorme classe média e alguns ricos (embora nenhum
podre de rico).
Tenha em atenção os números
que o atual sistema criou.
A população mundial está
atualmente muito próxima de atingir os oito mil milhões de habitantes[1]
(faltam pouco mais de cem milhões de habitantes).
De acordo com o relatório
publicado pela organização não-governamental OXFAM,[2] os 1%
mais ricos (menos de 80 milhões de habitantes) possui o dobro da riqueza detida por 6.9 mil milhões de habitantes.
Do mesmo relatório chegam-nos
números ainda mais impressionantes: apenas
2.153 (dois mil cento e cinquenta e três) multimilionários detêm mais riqueza
do que 4,6 mil milhões de pessoas, que correspondem a cerca de 60% da
população mundial.
A riqueza combinada dos 22 homens mais ricos do mundo é superior à de
todas as mulheres do continente africano[3]. Significa
isto que apenas 22 homens detêm mais riqueza que 689 milhões de mulheres[4].
O número que se segue é ainda
mais incrível: “Se todos se sentassem sobre o valor da sua riqueza empilhadas
em notas de 100 dólares, a maior parte da população mundial estaria sentada ao
nível do chão. As pessoas de classe média dos países mais ricos conseguiram
estar na altura de uma cadeira. Mas os
mais ricos do mundo estariam sentados no espaço sideral.
A OXFAM salienta que poupar
dez mil dólares por dia desde a construção das Grandes Pirâmides serviriam apenas para ter um quinto da
fortuna média dos cinco mais ricos do mundo”.
Jeff Bezos considerado
atualmente o mais rico do mundo tem uma fortuna avaliada em 149 mil milhões de
euros[5].
Em contrapartida:
Cerca de 800 milhões de
pessoas vive na extrema pobreza com menos de 2 (dois) dólares por dia[6].
Perto de 3.4 mil milhões de
pessoas (Mais de 43% da população mundial) não consegue receber mais do que 10
dólares por dia. Estamos, portanto, a falar de viver com menos de 300€ por mês.
Aproximadamente 1.6 mil
milhões de pessoas (cerca de 20% da população mundial) vive com 20 dólares por
dia (não chega a 600 euros por mês).
A soma destes três grupos
representa quase três quartos da população mundial (73.6%).
Surpreende-me que não se faça
mais para alterar este absurdo, porque não é justo, não é o que melhor serve o
interesse de todos e porque só é possível, porque assim o continuamos a
permitir (ou porque o queremos ou porque não soubemos fazer mais para o
contrariar).
Este sistema criou a crise de
2008. Uma crise gerada por ganâncias e egoísmos sem qualquer justificação para
além dos interesses próprios dos seus autores.
Em Portugal, os dois banqueiros
que mais prejudicaram o país com a referida crise financeira, em valores que
não deverão estar muito longe dos vinte mil milhões de euros, um deles morreu
em prisão domiciliária, e o outro, ainda recentemente foi visto a passar férias
em Itália.
Tenho ideia de já ter ouvido
dizer que neste país já há quem tenha ido parar à prisão por ter sido apanhado
a roubar um pacote de batatas fritas em um supermercado.
Mas este sistema económico em
que vivemos é igualmente responsável por outra crise que está longe de estar
resolvida e que ainda não fazemos ideia de qual será a sua amplitude, mas que
pode vir a ser demasiado grave ao ponto de seguirmos caminho idêntico ao dos
dinossauros, com a diferença de não aparentarmos necessitar da ajuda de
qualquer asteroide.
Temos uma enorme tendência
para endeusar aqueles que atingem o sucesso. O homem mais rico do mundo, o dono
da maior empresa do mundo, o melhor jogador da bola, etc.
Mas muitas vezes a diferença
do melhor para os que o seguem não é assim tão grande. Não querendo tirar
mérito a quem o tem, muitas vezes é (também) uma questão de oportunidade, de
estar na hora certa no lugar exato. Atrevo-me até a dizer que se não fosse
fulano seria sicrano e se não fosse hoje seria amanhã.
Mas infelizmente, nada parece
ser mais importante do que o nosso desejo projetado de vencermos o EUROMILHOES.
Qualquer dos milionários deste
mundo, se após um naufrágio fosse o único sobrevivente a chegar a nado a uma
ilha deserta, mesmo que fosse a ilha mais amistosa do planeta, sem quaisquer
predadores, sem repteis ou insetos venenosos, rica em recursos, tais como água
potável, plantas e frutos comestíveis, peixes e pequenos mamíferos, mesmo
nessas condições, na melhor das hipóteses conseguiria sobreviver.
Para se ficar milionário, é
necessário que estejam criadas determinadas condições que não dependem, nem
foram criadas por ninguém isoladamente.
Imaginem o mundo atual como um
gigantesco Burundi. Os quase oito mil milhões de habitantes, mas com o nível de
vida que encontramos atualmente neste pequeno país de Africa.
Se o mundo fosse um enorme Burundi,
de certeza que a riqueza dos multimilionários seria muitíssimo inferior. Em
contrapartida, se o mundo fosse uma enorme Singapura, a riqueza seria ainda
mais astronómica.
Apenas para se ter uma noção
dos valores em causa, o Produto Interno Bruto per capita do Burundi não chega a ser 1% do PIB per capita de Singapura.
A Amazon permitiu ao seu maior
acionista tornar-se no homem mais rico do mundo ao vender para quem tem forma
de comprar on-line.
Preocuparam-se certamente em adaptar-se
ao mercado das compras pela internet para melhor satisfazer a procura dos seus
clientes (e potenciais clientes).
Tanto quanto sei, as empresas
não se preocupam em resolver problemas socias, como a educação e a saúde, nem
com a qualidade de vida das populações ou com a sua ascensão social. Isso cabe
aos próprios cidadãos (e eventualmente) aos governos dos respetivos países.
Não creio que a Amazon se preocupe
em dar poder de compra a quem não o tem, ou sequer em garantir o acesso
generalizado à internet e às compras digitais.
Imagine que amanhã surge uma
nova pandemia, mas com um vírus dezenas de vezes mais mortal que o atual Covid-19.
Por razões ainda
desconhecidas, esse vírus implantou-se muitíssimo mais no hemisfério norte do
que no hemisfério sul.
Nesse cenário imaginado, as
vendas da Amazon cairiam a pique, no entanto, não foi porque trabalhou menos ou
pior do que em anos anteriores.
Imagine agora um cenário
totalmente oposto. Um cientista descobria uma forma de energia limpa,
inesgotável e extremamente barata. A economia mundial crescia como nunca.
Há vários fatores que não
dependem do bom desempenho das empresas e que podem determinar resultados
diametralmente opostos.
Cristiano Ronaldo é um jogador
de futebol com fãs espalhados pelo mundo inteiro. Isso deve-se ao seu talento e
empenho, mas também devido ao desenvolvimento tecnológico que permitiu que os
seus jogos sejam acompanhados por adeptos de futebol espalhados pelo planeta,
seja através da internet ou da televisão (por cabo ou satélite).
Essa visibilidade global
permite-lhe faturar milhões todos os anos, valores que por exemplo, nunca
estiveram ao alcance de Diego Armando Maradona, apesar de ser considerado por muitos,
o melhor futebolista de todos os tempos.
Claro que o dinheiro
proveniente dos contratos publicitários que Cristiano assina, pertencem-lhe inteiramente
e são totalmente legais. Apenas quis referir que nunca conseguiria ganhar tanto
dinheiro se não tivesse tanta visibilidade, e que grande parte dessa
visibilidade só é possível graças ao aumento do poder de compra e ao desenvolvimento
tecnológico que ainda não havia apenas há três décadas (e para o qual, muito
provavelmente, ele não terá contribuído).
Temos assistido a governos
ajudarem grandes empresas quando estas atravessam momentos de grande
dificuldade. Não me refiro apenas aos dinheiros públicos e às medidas de
austeridade que serviram para salvar bancos (geridos por gananciosos). O mesmo
já aconteceu (e provavelmente continuará a acontecer) com outras empresas
públicas e privadas.
Apesar de estarem disponíveis
para serem ajudadas pelo dinheiro dos contribuintes, as empresas pretendem cada
vez mais lucros para os seus acionistas e pagar o menos possível em impostos e
salários, mesmo que os ditos sirvam para aumentar o poder de compra (de muitos
que também são seus clientes).
A distribuição da riqueza é
altamente injusta. Apesar do trabalho ser feito por uma organização, o lucro é
maioritariamente distribuído por uma pequena parte (na verdade, atualmente, na
grande maioria das vezes, é todo).
Por essa razão temos uma
desigualdade tão brutal, e não menos impressionante, ainda não parou de
crescer: não querem pagar mais impostos; nem aumentar os salários nem distribuir
os lucros.
Não nos devemos esquecer que
em qualquer empresa que seja viável, os trabalhadores pagam-se a si próprios e
ainda geram mais-valias. Se assim não for, a empresa para subsistir necessita
de ser financiada.
Sim, é verdade que dão emprego
e contribuem para o crescimento económico e a melhoria de vida de muita gente.
Mas isso é assim porque não pode ser de outra maneira. Quando as empresas
tiverem máquinas que façam o trabalho de pessoas, de forma mais eficiente e
económica, acredita que (por vontade delas) vai continuar a ser assim?
É inegável que alguém que
passa de uma empresa de garagem para uma empresa como a Amazon tem de ter
muitas qualidades. Provavelmente são pessoas com um excelente entendimento do
funcionamento de mercados (e talvez da própria sociedade). Muitos tiveram o
mérito de criar riqueza e ajudar a economia a crescer. Mas acima de tudo, é
importante reter que só é possível, porque as
atuais regras do jogo permitem que se enriqueça relativamente rápido e com
limites para lá da troposfera.
Do meu ponto de vista, não
creio que fosse injusto a certa altura colocar um travão, não tanto para
impedir o crescimento da riqueza pessoal, mas para o desacelerar.
Se, de um modo geral, a
sociedade contribui para a possibilidade de criar mais riqueza, através do
desenvolvimento tecnológico, do investimento no conhecimento, e do aumento do poder
de compra, então parece-me justo que a partir de certo nível de riqueza, a
contribuição das empresas para os que proporcionaram esse enriquecimento, pudesse
ser maior do que é atualmente.
Isso não iria impedir que os
ricos continuassem a poder ter as suas excentricidades, apenas que a certa
altura, o enriquecimento desacelerava, para poderem contribuir para a
comunidade que os ajudou a ter sucesso.
[1]
https://www.worldometers.info/
[2]
https://www.oxfam.org/en
[3]
https://visao.sapo.pt/exame/macro/2020-01-20-seis-numeros-que-mostram-um-mundo-cada-vez-mais-desigual/
[4]
https://countrymeters.info/pt/Africa
[5]
https://www.jn.pt/economia/os-dez-homens-mais-ricos-do-mundo-num-ano-com-mais-660-multimilionarios--13546748.html
[6]
https://www.gapminder.org/tools/#$chart-type=mountain&url=v1