A sonsice de Pedro Passos Coelho
O chuto para a Procuradoria é apenas um expediente espertalhão com o objectivo de adiar a admissão do óbvio: o primeiro-ministro fez asneira. E da grossa.
Não há qualquer vontade de apurar “a verdade” ou desejo de
esclarecer a pátria no pedido do primeiro-ministro para a Procuradoria-Geral da
República investigar o caso Tecnoforma. O Ministério Público tem mais que fazer
e Passos Coelho sabe muito bem o que fez. Pode ter sido há 15, 20 ou 30 anos:
ninguém se esquece de um ordenado que duplica o rendimento mensal.
Simplesmente, Passos não quer, nem pode, admiti-lo – para ser coerente com o
moralismo que apregoa, teria de se demitir no minuto seguinte. Donde, o chuto
para a Procuradoria é apenas um expediente espertalhão com o objectivo de adiar
a admissão do óbvio: o primeiro-ministro fez asneira. E da grossa.
Isto é simultaneamente ridículo e sintomático. Ridículo,
porque os valores que estão em causa não justificariam a queda de um
primeiro-ministro. Sintomático, porque o problema da Tecnoforma está longe de
ser o dinheiro que pagava a Passos Coelho – a empresa é um retrato perfeito de
como se desviam fundos europeus para actividades que podem até nem ser ilegais,
mas que são inconcebíveis e imorais. Convém recordar aos mais esquecidos que a
Tecnoforma era essa extraordinária empresa, impulsionada pelo romântico par
Passos-Miguel Relvas, que se propunha, em troca de 1,2 milhões de euros, dar
formação a 1063 pobres almas com um objectivo que parece saído do argumento de
uma série cómica britânica: ensinar os mais de mil formandos a operar em nove
aeródromos da Região Centro, dos quais só três estavam activos e empregavam, no
total, cerca de 10 trabalhadores.
Foi assim que, durante anos e anos, foram estoiradas dezenas
de milhões de euros de fundos comunitários que deveriam contribuir para o
desenvolvimento do país. E claro: quem frequentava os corredores da Assembleia
da República era um veículo privilegiado para canalizar os fundos para terrenos
favoráveis. O Manuel sabia de um concurso para a formação de medidores de
perímetros de beringelas e dizia ao Joaquim; o Joaquim sabia de um concurso
para a formação de analistas em brilho de superfícies inox em restaurantes e
dizia ao Asdrúbal; o Asdrúbal sabia de um concurso para formar os formadores
disto tudo e dizia ao Manuel. A única variável neste processo era mesmo a
dimensão da lata e a vocação dos senhores deputados e secretários de Estado
para gerir negócios. Havia alguns, como Miguel Relvas, que tinham muita lata e
muita vocação. Havia outros, como Passos Coelho, que provavelmente seriam um
pouco mais modestos – mas que, ainda assim, aproveitavam uma migalha aqui e
outra acolá, porque a vida é longa e o ordenado de deputado curto.
Só que, ao contrário de Relvas, que tem um sorriso do
tamanho da sua lista telefónica e se assume como “facilitador de negócios”, Pedro
Passos Coelho sempre se apoiou numa imagem de extrema modéstia e parcimónia.
Ele é o homem de Massamá. Ele é o homem que passa férias em Manta Rota. Ele é o
homem que pôs os ministros a viajar em turística. E esse homem, claro está, não
pode conviver com uma acusação de cinco mil euros a caírem-lhe no bolso todos
os meses sem que ele se recorde disso, ao mesmo tempo que invoca o estatuto de
deputado em exclusividade para sacar 60 mil euros de subsídio de reintegração.
É possível que Passos Coelho apenas tenha feito aquilo que todos fizeram
durante os festivos anos 90. Só que aquilo que ele fez em 1999 não é aceitável
em 2014. E ainda bem. A sonsice vai aguentá-lo – mas a sua reputação de
governante impoluto morreu.