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sexta-feira, 11 de março de 2022

 

8.          A apropriação inicial!

Façamos um pequeno exercício, e tentemos imaginar como tudo poderá ter começado.

Nos primeiros tempos da domesticação de animais e plantas (agricultura), a solidariedade e entreajuda terão certamente dominado. Vínhamos de milhões de anos como caçadores-coletores e nesse longo período, essas boas práticas sempre estiverem presentes.

Provavelmente o trabalho de pastorear os animais começou por ser dividido por vários elementos do grupo. O mesmo em relação aos trabalhos de sementeira e cultivo de plantações. É muito provável que pessoas mais idosas ajudassem de outras formas, e que algumas mulheres ficassem a tomar conta dos bebés e das crianças mais novas e ainda dependentes.

Essa divisão de tarefas funcionava bem porque permanecia o espírito de entreajuda e solidariedade que traziam dos tempos recentes.

Certo ano surgiram problemas inesperados. O mau tempo causou grandes perdas nas colheitas de cereais (principal fonte de alimento daquele grupo).

Para piorar ainda mais a situação, determinado germe causou a morte de parte considerável dos animais de criação.

O grupo, entretanto, tinha crescido e já não tinha dimensão que permitisse voltar aos tempos de caçador-coletor, a não ser que fosse fracionado.

Por outro lado, já havia muito investimento físico e emocional naquele lugar.

Ninguém o queria abandonar. A preocupação principal era salvar o máximo que conseguissem.

Os mais fracos não resistiram, mas o grupo sobreviveu e conseguiu ultrapassar a sua primeira crise enquanto sedentários (por oposição a nómadas).

Quando se juntaram para organizar a recuperação, alguém começou por sugerir que talvez não fosse boa ideia colocar os animais todos juntos, porque mais facilmente transmitem doenças de uns para os outros.

Poderá ter acontecido o mesmo com as plantações. É provável que se tenham apercebido que alguns terrenos oferecem melhor proteção contra chuvas intensas, porque têm menos tendência para alagar, enquanto outros resistem melhor às fortes ondas de calor, porque não estão tão expostos ao sol.

Talvez isso tenha alterado a forma como dividiam o trabalho. Imagine que determinado indivíduo, por uma questão de proximidade, ficou encarregue de cuidar de determinado terreno.

Ao princípio entrega toda a produção para a comunidade. Com o passar do tempo, consegue aumentar a produção que retira do seu trabalho, mas continua a entregar a mesma quantidade inicial. Dessa forma fica com um excedente para alguma eventualidade. Deixou de pensar (prioritariamente) no bem de todos e passou a pensar (individualmente) no seu bem-estar.

Também pode ter acontecido que a certa altura se tenha apercebido que se trabalhasse mais horas, conseguia acumular mais riqueza (mais cereais, mais gado, mais comida).

Ao criar excedente, pode ter-se interrogado parque haveria de estar a criar riqueza para os outros, que não trabalham tanto quanto ele. Ele é que se mata a trabalhar e os outros é que ficam com os “lucros”?

Também pode ter-se dado o caso de um pequeno núcleo dentro do bando, por exemplo, um casal com a respetiva prole, ter decidido afastar-se umas centenas de metros, para se estabelecer e começar a cultivar num determinado terreno desocupado, e criar os “seus próprios animais”.

Imagine que a moda pegou e outros decidiram fazer o mesmo…

Geralmente as “coisas” começam devagarinho, e depois vão ganhando cada vez mais força, até que atingem proporções que determinam uma nova realidade.

Isto são apenas cenários. Creio que ainda não há certezas sobre como tudo se passou. Podemos apenas, com base nos conhecimentos atuais, imaginar algumas possibilidades.

Mas uma coisa parece ser certa. A certa altura nasceu a propriedade privada. As terras deixam de ser de todos (e de ninguém) para passarem a ter um dono.

Se foi assim, ou se foi de outra forma, não creio que seja relevante.

Em qualquer dos casos, num determinado momento, houve critérios que se tornaram decisivos e não creio que algum deles tenha sido o mérito.

Repare que durante milhões de anos fomos caçadores-coletores. Era impossível prever quando iríamos dar início a uma nova aventura como agricultores.

Não podemos atribuir qualquer mérito aos que estavam naquele local e naquele momento da nossa história civilizacional. De certo modo foi um acaso.

De igual modo, que mérito tem alguém por ter a idade que tem? Por ter mais saúde e maior disponibilidade física?

Tudo foi acontecendo, e como em muitos outros acasos, uns foram mais beneficiados do que outros.

Quando pela primeira vez passou a haver propriedade privada, que irá ter um papel preponderante nas desigualdades socias, o mérito e a seleção natural não estiveram presentes: um fulano de 70 anos até pode ter melhores genes do que um de 30, mas a idade não perdoa; e é inapropriado atribuir mérito a alguém, apenas por ser jovem.

É fácil de imaginar que um homem de 30 anos, saudável e forte, consiga ocupar e tratar muito mais terras do que alguém com 70.

Dois irmãos jovens ocupariam e cultivavam muito mais terras do que duas irmãs, mesmo que igualmente jovens, se uma estivesse grávida e a outra a amamentar.

Portanto, questões relacionadas com a idade, género e estado de saúde, podem ter determinado quem conseguiu apropriar-se de mais terras.

A partir desse momento, alguns passaram a estar em vantagem sobre os outros.

Essa desigualdade de oportunidades inicial passou a estar sempre presente e mantém-se até aos dias de hoje.

Claro que foi um processo gradual, mas na maior parte das vezes, tenho muitas dúvidas que o mérito tenha sido o fator determinante.

Enquanto caçador-coletor, o ser humano nunca tinha conseguido acumular alimentos para tantos dias. A agricultura proporcionou a concentração de riqueza.

Julgo que é legítimo afirmar que a partir do momento em que passou a haver excedente, surgiram o egoísmo e a ganância.

2 comentários:

  1. Muito bom.
    Sem dúvida é não vai acabar, só quando a humanidade morrer...

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  2. Bem desenvolvido. O egoísmo e a ganância trouxeram as disputas e as guerras.

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