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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

“O Estado social somos todos nós”, diz Lobo Antunes


Tal como na medicina, é indispensável fazer o “diagnóstico das causas da crise” para acabar com ela e para prevenir reincidências, afirma o neurocirurgião, acrescentando que a crise económica “ameaça esfarrapar o Estado social”.

Era uma “reflexão despretensiosa” aquela que o neurocirurgião João Lobo Antunes se propunha fazer sobre o que o preocupa como cidadão no actual estado das coisas do Estado social. Tendo em conta a sua área de eleição, o também Conselheiro de Estado não se coibiu de mencionar uma ou outra ligação que podem ser encontradas entre a medicina e a política. Fez uma resenha sobre a história da teoria do Estado social para acabar por concluir que, hoje, “o Estado social somos nós”.
“O modelo social europeu é em si mesmo um programa político, representa uma conquista social sem preço e a sua destruição seria uma catástrofe”, afirmou Lobo Antunes na conferência Afirmar o Futuro, que esta terça-feira terminou na Fundação Calouste Gulbenkian. A ideia inicial das funções do Estado começaram a ganhar forma na Europa central no século XIX com as políticas de Bismark sobre pensões de reforma, por acidente ou doença. E materializaram-se no início do século XX com intervenções em serviços sociais como a educação, saúde, transportes, habitação, cultura, apoios sociais. Mas foi preciso esperar pelo pós-segunda guerra para que o crescimento do Estado social ficasse intimamente ligado ao boom económico, recordou Lobo Antunes, ainda que o modelo social tenha “assumido na Europa roupagens muitos variadas”.
Em Portugal as coisas demoraram mais, mas o neurocirurgião considera que “indiscutível que o Serviço Nacional de Saúde foi uma das mais felizes germinações da revolução de Abril e aquela que mais se entranhou na alma dos cidadãos como um direito inalienável”.
No final da década de 80, com o fim do muro de Berlim, começou a “questionar-se a viabilidade do modelo social vigente” e essas dúvidas adensaram-se nos últimos anos com a crise financeira. O que faz perigar as muitas formas de segurança que esse Estado social imprimia à vida dos cidadãos. Agora, politicamente, nem a direita nem a esquerda sabem lidar com o que resta desse Estado social.
“A crise económica ameaça esfarrapar o Estado social”, avisa o médico. Tal como na medicina, é indispensável fazer o “diagnóstico das causas da crise” para acabar com ela e para prevenir reincidências. Lobo Antunes considera que a saúde é uma área onde não pode haver cedências nas responsabilidades do Estado porque tem “efeito multiplicador na economia” – faz aumentar a produtividade, o capital humano e por cada ano ganho na esperança de vida a economia cresce 4%, enumera.
“O debate sobre sustentabilidade do Estado social, e particularmente da saúde, é habitualmente dominado por duas dimensões: a sustentabilidade financeira e a sustentabilidade política, tendo esta última condição da primeira e sendo ambas condições necessárias mas não suficientes”, apontou Lobo Antunes. Por isso, “o paradigma da saúde pode ajudar a recentrar a questão das prestações do Estado social” e isso é especialmente importante numa altura como a actual. “As políticas de saúde em tempo de crise implicam fazer o que é necessário”, mas fazê-lo de forma prudente, racional, informada. O que nem sempre é fácil porque, admite, “a crise tem também como consequência o turvar da tomada emocional das decisões”,
“Para a saúde ser sustentável precisamos de uma população saudável e também responsável pela sua própria saúde e de práticas de saúde bem integradas com outras políticas educativas, sociais e económicas. Ou seja, precisamos de saúde em todas as políticas.”
Até porque, continuou, o Estado social adaptado é “indispensável para servir o interesse público na educação, na justiça, na saúde, na segurança social, em todas as áreas de intervenção do Estado junto dos cidadãos. Só assim podemos ter uma democracia saudável e competitiva.” E perante este quadro global, João Lobo Antunes rematou: “O Estado social, no fundo, somos nós.”


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