Jogar golfe é um direito humano. Nas Amoreiras
Anos a fio ministros e autarcas andaram a esconder dívidas em centenas de
entidades cujas contas não entravam nas do défice público. Já o sabíamos. Não
sabíamos é que isso até incluía clubes de golfe.
Não há nada como fazer contas de somar. Ou, para ser mais exacto, juntar
tudo e somar tudo, sem deixar nada de fora, sem truques, sem lixo escondido por
baixo dos tapetes nem contas omitidas.
Sabíamos há muito que, anos a fio, os governos e os autarcas se tinham
especializado em disfarçar as contas públicas: tudo o que pudessem tirar do
perímetro da consolidação orçamental não contava para o défice e para a dívida,
escapava ao cutelo de Bruxelas e iludia a crendice dos eleitores. Sabíamos
também que um dia íamos ter de alterar critérios e tirar esses esqueletos dos
armários. Nesse dia as contas públicas ficariam ainda mais feias. Foi isso que
aconteceu agora. O que descobrimos é pior do que aquilo que imaginávamos.
Ver os défices do passado darem saltos de canguru era certo e sabido
que ia acontecer. Mesmo assim não se imaginava que em 2010, o último ano do
consulado Sócrates, o défice tivesse chegado aos 11,2%. Não há memória de tal
desequilíbrio nas contas do Estado e só se estranha que ainda haja quem se
orgulhe desse feito.
Mas a maior das surpresas não foi ver alguns destes saltos – foi ver o
tipo de entidades que, a partir de agora, são consideradas “Entidades do Setor
Institucional das Administrações Públicas”, isto é, as suas contas vão
directamente ao nosso bolso, o de contribuintes, sem subterfúgios ou disfarces.
A lista de todas essas entidades enche 94 páginas de um documento ontem
disponibilizado pelo Instituto Nacional de Estatísticas, com 40 a 50 entidades
por página. Está lá tudo, desde a Assembleia da República do Clube de Golfe das
Amoreiras. Sim, aquele clube de golfe onde nunca se chegou a dar uma tacada.
Sim, um clube que não está sozinho, pois tem a companhia do “Porto Santo Golf
Resort”. E de muitas outras coisas bizarras, como marinas, aquários ou termas,
teatros e fundações, para além, claro, de estádios do Mundial. A quantidade de
coisas que o Estado acha que lhe compete fazer, e para fazer, ter, é
infindável.
Depois da surpresa, a leitura atenta da lista permite-nos perceber o que
entrou para ela este ano – 268 entidades – e o que fez saltar os números dos
défices passados. Mais: permite perceber melhor porque é que em Portugal só
muda o que permite que tudo fique na mesma.
Entre as entidades que entraram para o perímetro da consolidação
orçamental as que pesam mais são a CP, com as suas dívidas gigantescas, a maior
parte dos grandes hospitais, incluindo todos os IPO, e empresas públicas como a
Parpública ou a Estamo. A forma como o Estado geria a relação com essas
entidades simboliza bem o modo como sucessivos governos trataram de disfarçar o
défice real das contas públicas. É certo que, no fim do dia, paga sempre o
mesmo mexilhão, mas essas entidades, ao conseguirem endividar-se fora do perímetro
das contas públicas, ajudavam a criar a ilusão de que as contas do Estado
estavam controladas quando, afinal, estavam era maquilhadas.
Veja-se o caso da Estamo. Essa empresa comprava ao Estado edifícios
ocupados por serviços públicos. Quando o fazia, a “venda” funcionava como
receita e abatia às contas do défice, apesar de só se ter trocado o dinheiro de
bolso. Para realizar essas compras, a Estamo ia ao mercado bancário
endividar-se, mas isso não era problema porque a sua dívida não contava para a
dívida pública. Depois, para fingir que era uma empresa a sério, passava a
cobrar renda aos serviços públicos que, mesmo tendo vendido os imóveis em que
estavam instalados, por lá continuavam. Essas rendas passavam a ser um custo
que, esse sim, pesaria no défice dos anos seguintes.
Como foram quase três centenas as entidades que agora, por imposição das
novas regras europeias, tiveram de ser integradas no perímetro das
administrações públicas, basta-nos multiplicar por 300 esquemas deste género,
mesmo que em dimensão menor, para termos uma ideia de como se alimentou, da
administração central à administração local, uma fatal ilusão sobre a saúde das
contas do Estado.
Estes mecanismos não permitiam poupar dinheiro ou dívida, quanto
muito atiravam para o futuro contas que deviam ser pagas hoje. Nenhum
contribuinte se escaparia a pagar a factura quando ela aparecesse. O que estes
mecanismos permitiam era gastar mais fingindo que se estava a gastar menos. Com
eles era possível – como agora se vê com mais clareza ao conhecermos
o valor das contas corrigidas dos défices de 2010 a 2013 – iludir as
regras impostas pela moeda única. Com elas, no fundo, era possível manter o
Estado a viver acima das suas possibilidades, uma expressão que irrita muita
gente mas que este exemplo ilustra de forma especialmente eloquente.
Tão impressionante como passar os olhos pela infindável lista de
entidades, é interiorizar que tudo aquilo que ali está tem responsáveis, tem
administradores, tem secretariados, tem viaturas e quase sempre tem motoristas.
Olha-se para ali e percebe-se a dimensão do país dos boys: até uma
gráfica a CP tinha, e até essa gráfica tinha gestores de nomeação política.
É por isso que digo que Portugal não muda. E que ninguém reforma o Estado
a sério e a doer. Ou que então só o “reformam” quando do exercício resulta um
número não muito diferente de entidades com lugares para preencher.
As regras da União Europeia impuseram-nos esta transparência e agora o
INE vai poder olhar para as contas de todas estas entidades e fazer, no fim, as
contas de somar que há muito deviam ser feitas. E o que é triste é que se
hoje nos assustamos com a nova dimensão dos velhos défices,
amanhã lá estaremos a ver se, no Clube de Golfe das Amoreiras, o tal onde nunca
se deu uma tacada mas que certamente cumpre uma qualquer nobre função pública,
quiçá social, porventura tão essencial como qualquer outro direito humano, não
haverá ainda alguma mordomia disponível. Quem sabe…
Anos a fio ministros e autarcas andaram a esconder dívidas em centenas de
entidades cujas contas não entravam nas do défice público. Já o sabíamos. Não
sabíamos é que isso até incluía clubes de golfe.
Não há nada como fazer contas de somar. Ou, para ser mais exacto, juntar
tudo e somar tudo, sem deixar nada de fora, sem truques, sem lixo escondido por
baixo dos tapetes nem contas omitidas.
Sabíamos há muito que, anos a fio, os governos e os autarcas se tinham
especializado em disfarçar as contas públicas: tudo o que pudessem tirar do
perímetro da consolidação orçamental não contava para o défice e para a dívida,
escapava ao cutelo de Bruxelas e iludia a crendice dos eleitores. Sabíamos
também que um dia íamos ter de alterar critérios e tirar esses esqueletos dos
armários. Nesse dia as contas públicas ficariam ainda mais feias. Foi isso que
aconteceu agora. O que descobrimos é pior do que aquilo que imaginávamos.
Ver os défices do passado darem saltos de canguru era certo e sabido
que ia acontecer. Mesmo assim não se imaginava que em 2010, o último ano do
consulado Sócrates, o défice tivesse chegado aos 11,2%. Não há memória de tal
desequilíbrio nas contas do Estado e só se estranha que ainda haja quem se
orgulhe desse feito.
Mas a maior das surpresas não foi ver alguns destes saltos – foi ver o
tipo de entidades que, a partir de agora, são consideradas “Entidades do Setor
Institucional das Administrações Públicas”, isto é, as suas contas vão
directamente ao nosso bolso, o de contribuintes, sem subterfúgios ou disfarces.
A lista de todas essas entidades enche 94 páginas de um documento ontem
disponibilizado pelo Instituto Nacional de Estatísticas, com 40 a 50 entidades
por página. Está lá tudo, desde a Assembleia da República do Clube de Golfe das
Amoreiras. Sim, aquele clube de golfe onde nunca se chegou a dar uma tacada.
Sim, um clube que não está sozinho, pois tem a companhia do “Porto Santo Golf
Resort”. E de muitas outras coisas bizarras, como marinas, aquários ou termas,
teatros e fundações, para além, claro, de estádios do Mundial. A quantidade de
coisas que o Estado acha que lhe compete fazer, e para fazer, ter, é
infindável.
Depois da surpresa, a leitura atenta da lista permite-nos perceber o que
entrou para ela este ano – 268 entidades – e o que fez saltar os números dos
défices passados. Mais: permite perceber melhor porque é que em Portugal só
muda o que permite que tudo fique na mesma.
Entre as entidades que entraram para o perímetro da consolidação
orçamental as que pesam mais são a CP, com as suas dívidas gigantescas, a maior
parte dos grandes hospitais, incluindo todos os IPO, e empresas públicas como a
Parpública ou a Estamo. A forma como o Estado geria a relação com essas
entidades simboliza bem o modo como sucessivos governos trataram de disfarçar o
défice real das contas públicas. É certo que, no fim do dia, paga sempre o
mesmo mexilhão, mas essas entidades, ao conseguirem endividar-se fora do perímetro
das contas públicas, ajudavam a criar a ilusão de que as contas do Estado
estavam controladas quando, afinal, estavam era maquilhadas.
Veja-se o caso da Estamo. Essa empresa comprava ao Estado edifícios
ocupados por serviços públicos. Quando o fazia, a “venda” funcionava como
receita e abatia às contas do défice, apesar de só se ter trocado o dinheiro de
bolso. Para realizar essas compras, a Estamo ia ao mercado bancário
endividar-se, mas isso não era problema porque a sua dívida não contava para a
dívida pública. Depois, para fingir que era uma empresa a sério, passava a
cobrar renda aos serviços públicos que, mesmo tendo vendido os imóveis em que
estavam instalados, por lá continuavam. Essas rendas passavam a ser um custo
que, esse sim, pesaria no défice dos anos seguintes.
Como foram quase três centenas as entidades que agora, por imposição das
novas regras europeias, tiveram de ser integradas no perímetro das
administrações públicas, basta-nos multiplicar por 300 esquemas deste género,
mesmo que em dimensão menor, para termos uma ideia de como se alimentou, da
administração central à administração local, uma fatal ilusão sobre a saúde das
contas do Estado.
Estes mecanismos não permitiam poupar dinheiro ou dívida, quanto
muito atiravam para o futuro contas que deviam ser pagas hoje. Nenhum
contribuinte se escaparia a pagar a factura quando ela aparecesse. O que estes
mecanismos permitiam era gastar mais fingindo que se estava a gastar menos. Com
eles era possível – como agora se vê com mais clareza ao conhecermos
o valor das contas corrigidas dos défices de 2010 a 2013 – iludir as
regras impostas pela moeda única. Com elas, no fundo, era possível manter o
Estado a viver acima das suas possibilidades, uma expressão que irrita muita
gente mas que este exemplo ilustra de forma especialmente eloquente.
Tão impressionante como passar os olhos pela infindável lista de
entidades, é interiorizar que tudo aquilo que ali está tem responsáveis, tem
administradores, tem secretariados, tem viaturas e quase sempre tem motoristas.
Olha-se para ali e percebe-se a dimensão do país dos boys: até uma
gráfica a CP tinha, e até essa gráfica tinha gestores de nomeação política.
É por isso que digo que Portugal não muda. E que ninguém reforma o Estado
a sério e a doer. Ou que então só o “reformam” quando do exercício resulta um
número não muito diferente de entidades com lugares para preencher.
As regras da União Europeia impuseram-nos esta transparência e agora o
INE vai poder olhar para as contas de todas estas entidades e fazer, no fim, as
contas de somar que há muito deviam ser feitas. E o que é triste é que se
hoje nos assustamos com a nova dimensão dos velhos défices,
amanhã lá estaremos a ver se, no Clube de Golfe das Amoreiras, o tal onde nunca
se deu uma tacada mas que certamente cumpre uma qualquer nobre função pública,
quiçá social, porventura tão essencial como qualquer outro direito humano, não
haverá ainda alguma mordomia disponível. Quem sabe…
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